sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Calor de Criança




Escrevo este texto num papel comido pelo fogo, mas que ainda tem linhas traçadas para se escrever. Aquilo que vou contar é um pedaço da minha alma. Mas não essa! Outra…

O sol embrenhou-se no seu lençol gigante de água, despedindo-se de mais uma tarde calma e transparente. Uma criança pequena corria descalça ao longo da costa, levantando a cada passo um pedaço da areia da praia. Corria de braços abertos e um sorriso que não era, nem por sombras, capaz de se desviar. Os olhos piscavam, queixando-se do vento contra. As suas gargalhadas seguiam viagem com as ondas para enviar felicidade a outras bandas.

Um monte em forma de castelo fugia do padrão da areia, atravessando-se no caminho da sua corrida. O seu pé branco e delicado bateu como um tronco de arrombamento nos muros do castelo. Um gigante tombou tapando a vista à princesa presa na torre mais alta. “Ora, não faz mal! Afinal, era só um monte de areia”, despreocupou-se a menina rodando o corpo para o céu à procura de estrelas. Ainda nada se via, a não ser uma meia-lua desfasada pelas poeiras do ar.

Os longos caracolinhos da criança desenrolavam-se suavemente à passagem dos seus dedinhos distraídos. Ao longe encontrava-se a sua casinha modesta com a janela do quarto dos pais aberta na direcção do mar. Apenas se via uma luz quase invisível que tremelicava pelas paredes. O seu pai estaria certamente a escrever mais um dos seus textos em que reflectia sobre tudo e nada, apenas iluminando o pensamento com a tímida chama da vela.

Quando a criança se levantou olhou distraidamente para as ruínas do castelo e reparou com surpresa que a torre mais alta resistira ao ataque do gigante. “Adeus, princesa!”, sussurrou enquanto se afastava em direcção a casa.

Já não ia a correr. Os seus olhos esverdeados empurraram o olhar para o mar. Cada onda que se desfazia, deixava as suas gotas vestigiais em homenagem à anterior. Desviou o olhar rapidamente. Não se queria lembrar do avô que desaparecera e nunca mais tinha brincado com ela. Nunca mais a tinha levado a pescar nem nunca mais estivera com ela à procura das conchas mais bonitas da praia. As dela eram sempre as mais lindas, “Tal como tu!”, dizia o avô com o seu sorriso amável.

Mas não se podia lembrar destes momentos que nunca mais haveria de passar com ninguém. No entanto, já os olhos fabricavam mais uma lágrima cristalina e salgada, como o mar, com todo o carinho que tinham para dar. Logo um dedo a foi buscar. Mais uma memória que se evaporava com o calor do seu coração.

Já corria de novo pela praia de braços abertos e sorriso estampado. É este o pedaço de alma a que me referia… imaginação, à luz da vela!




Miguel Cruz

25.02.2010