sexta-feira, 16 de julho de 2010

Impurezas

Aqueles que foram,
Aqueles que são.
Aqueles que eram
E que já não são.
Sinto uma brisa fresca acariciar-me as feições. Respiro-a.
Sinto as ervas por cortar dançarem com as minhas pernas.
Verde, verde, verde... Olho para cima. Azul... Luz... Primavera...
Mas uma nuvem negra tapa o olhar do Sol. Olho para baixo e a uns metros de mim encontra-se uma grade que desenha um enorme quadrado. Aproximo-me.
Castanho... Sujo... Escuro... Por cima da grade, arame farpado.
Apuro o ouvido e ouço berros de desespero, berros de fúria, berros de morte. O cheiro a carne esturricada invade-me. Viro a cara bruscamente.
Verde, verde, verde... Alívio. Respiro fundo. Começo a andar para a direita, devagar, ao longo da grade. No chão, do lado de dentro, uma frase...
Aqueles que foram,
Aqueles que são.
Aqueles que eram
E que já não são.
... escrita na areia, possivelmente com a ponta dum dedo ensanguentado.
Na grade, uma placa...
PERIGO! Raça impura!
... pendurada, possivelmente limpa... Mas só por fora.
Continuei a andar...
Aqueles que foram...
Olhei à volta. Cadáveres espalhados pelo chão...
Aqueles que são...
Parei. Uma voz rouca lamentava-se do lado de dentro. Olhei. Uma criança de oito anos, suja, caída no chão. Fiquei a olhá-la atentamente. Senti uma gota a cair-me dos olhos sem ter dado por isso. De repente, ouvi um estalo. Olhei para cima. Um guarda, bem vestido, limpo, com um chicote na mão. A criança desatou a correr, com a mão poisada na nuca.
Aqueles que eram...
Um homem acolheu a criança nos braços. Tinha ar de médico. Tentou começar o curativo na nuca do menino. Um estrondo. Uma bala trespassou o homem que caiu com a criança nos braços, a protegê-la.
E que já não são...
O guarda levantou a arma, apontando para a cabeça da criança.
PERIGOSO! Raça impura!
Peguei numa pedra e atirei. O guarda caiu. A criança correu na minha direcção, atirou-se para a grade para a subir. Um berro de desespero disparou-a para trás. Ainda se ouvia a electricidade das grades. À minha frente, três corpos, sem vida.
Um corpo, debruçado, protegento algo que já lá não estava. Fora médico, agora tratado como um animal caçado.
Um corpo, pequeno, inocente, frágil, sujo. Caído no chão, electrificado. Sujo por fora, puro por dentro.
PERIGOSO! Raça impura!
Um corpo, grande, forte, limpo. Limpo por fora, sujo por dentro.
Virei-me, novamente bruscamente.
Verde, verde, verde...
Aqueles que foram,
Aqueles que são.
Aqueles que eram
E que já não são.
Não há raças, há ideais.
Sinto uma brisa acariciar-me as feições.
Respiro-a...

Miguel Cruz
18.01.2010