segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Um Diálogo

"Como sabes quando uma obra de Arte está acabada?"

"Nunca está..."

"Como sabes quando parar?"

"Nunca paro..."

"Mas chegas a dar o trabalho como terminado..."

"Nunca... O que não cabe numa obra, caberá na outra que vier. Só a Natureza poderá dar um Fim a essa obra, porque o conjunto de todas as obras é que forma a verdadeira Obra de Arte, a qual normalmente designamos de Vida. No entanto, nunca terá um Fim, se realmente for Arte."

"Então... E quem não é artista?"

"Não é preciso ser artista de profissão para se criar a Arte... Basta fazer da Vida uma Obra de Arte e fazer das Obras de Arte uma Vida..."

Miguel Cruz

26Setembro2011



Dedicado à Rita Oliveira, que foi a primeira pessoa a ler e, se não tivesse sido ela, não o teria publicado. E porque no texto ela está muito presente.

Obrigado por tudo, Rita!

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

"O Rapaz Invisível" de Joana Neves

Se tens medo de adormecer
E no escuro nada consegues ver
Não tentes escurecer os dias
Porque descobri que te conheço
Que és como me lembro.

Quando pegas no silêncio embrulhado
Que insistes em pintar
Na tempestade ficaste encharcado
Com medo de um dia te poderes esquecer
Como é viver.

Se toda a maneira de caminhar
Faz estremecer as pedras da calçada
Quando o teu vulto passa
Elas não vão dar por nada.

Quando vais e recuas
Quando chegas e na tempestade continuas
Ao longe eu consigo ver-te
Mas se me aproximar devagar
E o vento ouvir
Ele por ti vai passar
E tal como as pedras da madrugada
Ele não vai dar por nada.

Tu és uma recordação
És a memória que existe
Quando ando assim
Livre
Às gotas da chuva.

Joana Neves
12 de Outubro de 2009

Miguel Cruz - O Rapaz Invisível by miguelcruzsolo

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

O Velho

Estava na praia, deitado na areia, ouvindo o Mar, todo coberto de pequenos grãos. O Sol brilhava-lhe nos olhos semicerrados, talvez em busca de uma memória, ou de um pensamento. A sua pele envelhecida enrugava-se como uma cama por fazer, como se a desarrumação das suas memórias e pensamentos se desenhasse no rosto. Olhou para as suas mãos. Ficou sem saber se as deveria olhar como mãos velhas ou como mãos experientes. Teria tido alguma experiência na vida que lhes desse esse estatuto ou tê-las-ia confiado à idade e aos anos que passavam sem piedade? A dúvida assomara-lhe às ideias. Não sabia se vivera uma vida com propósito, cheia. Não sabia se já podia morrer descansado, sabendo que deixava ao Mundo uma vida completa e feliz. O que sentia é que vivera o Tempo e não a Vida. Que o “não” do medo o atrelara à carruagem do Tempo, mirando os momentos de longe e não os vivendo de perto. Tais momentos tornavam-se simples quadros belos numa casa assombrada e vazia, em vez de cenários com todas as dimensões, mesmo a emocional e sentimental, em que os únicos quadros eram aqueles que representavam a fase anterior ao mergulho no momento. Para ele, estes cenários não eram a Vida, mas sim os sonhos, pois não os conseguira puxar dos subúrbios da imaginação para a realidade em que vivia. Vivera a vida dizendo que não a tudo o que implicava riscos. Agora via que vivera a vida dizendo que não a tudo. Ponto final. Porque agora dera-se conta que tudo na vida implica riscos. Dissera que não, com medo do “sim” e das mágoas e dores que poderia trazer consigo. No fim, fora o “não” que trouxera essa mágoa e essa dor por nada na vida conhecer. Não fora em busca. Não procurara os sabores da vida e foi-se escondendo no seu canto, cada vez mais pequeno, mergulhado no sabor do desespero da procura da Felicidade em cada pedaço do seu canto. No seu inconsciente sabia que era lá fora que ela se encontrava. A Felicidade e aquilo de que ela é feita. Mas foi o medo que lhe falou mais alto, dizendo que era naquele canto que ele seria feliz, pois não iria sofrer e estaria protegido. Falava-lhe com aquela voz mesquinha e falsamente carinhosa da consciência. Era assim que se tranquilizava e se libertava do peso que carregava às costas. No entanto, no fundo, sempre soube que isso era o mesmo que enterrar um cadáver resultante de um homicídio seu na esperança de que ele desaparecesse, só porque não o via. O pavor e o medo eram os mesmos em ambas as situações. Reconfortantes por instantes, mas irrealistas.

Via-se agora velho em todos os aspectos, mas sem histórias nem experiências para partilhar com a descendência que não tinha. Sentia-se um caco do vidro que poderia ter sido. Era pequeno, turvo e difuso em vez de brilhante e transparente. São as histórias e as experiências que aumentam os homens. São os medos e os preconceitos que os diminuem também.

Não amara ninguém ou, pelo menos, tapara os olhos aos amores que piscaram na sua vida como estrelas cadentes. A ideia do Amor trazia-lhe pânico pela dor que não faltava a quem amava dos seus conhecidos. Histórias, só as tinha com as gentes outrora imaginadas nos sonhos que o entretinham à noite. Acordava, achando-os um disparate e o cúmulo da irrealidade. Hoje via tudo de modo diferente. Encarava-se no espelho de água do Mar e sentia falta das rugas e cicatrizes que marcam as histórias no corpo das pessoas como prova de que as viveram. As que tinha eram as que marcavam a solidão e a mágoa do vazio. Viveu o Nada, quando tudo estivera nas suas mãos.

Agora era tarde. Restavam-lhe poucos anos de vida e não seriam esses que lhe encheriam o Ser. Sentou-se e agarrou num pequeno pedaço de areia que foi deixando cair, grão a grão. De repente, algo lhe conquistou um sorriso de esperança. Uma ideia que antes lhe poderia parecer absurda, mas que agora fazia todo o sentido. Os grãos de areia pararam de cair. Como é que tão pequeno pedaço de areia demorara tanto tempo a abandonar-lhe a mão? O pouco tempo que lhe restava de vida poderia também tornar-se enorme se o vivesse, em vez de o passar. Nunca é tarde. Viveria agora cada momento da sua vida. Viveria até poder dizer no Fim “hoje morro feliz”. Viveria até deixar ao Mundo histórias que enchem uma vida. Um dia ouvira duas curiosas palavras latinas. No entanto, quando lhes investigou o significado, escondeu-se de novo na sombra do medo. Hoje eram essas palavras que lhe indicavam o caminho e atropelavam esse sentimento que lhe arruinara a vida.

Rebolava agora na areia, soltando gargalhadas para que todo o Mundo partilhasse da sua alegria e o visse voar pelo céu da Liberdade. Ouvia o vento sussurrar-lhe nos ouvidos, ouvia os murmúrios do Mar, ouvia os pássaros cantar, ouvia as folhas das árvores suspirar… Só agora lhes prestava atenção. Diziam aquelas duas palavras pelas quais também eles subtilmente se guiavam… Eles e toda a Natureza. Tudo o que havia a fazer, era ouvir, sem medo…

Carpe Diem!

Miguel Cruz

26Agosto2011

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Reflexo

Movo a mão para ajeitar o cabelo desgrenhado que se revolta sobre um corpo alto e magro, perante um comprido espelho. Vejo toda a minha figura superficial e encho-me de questões existenciais. “Que criatura é esta em que me vejo? Para que serve?”. Talvez seja um bem material móvel que é possuidor e protector de um ideal. Ideal esse que se irá identificar com outros ideais presentes noutras criaturas, em alguns aspectos. Talvez seja esse o segredo e a Natureza das relações humanas. Seja. Que importa? Que me importa isso, se me encontro só perante a minha imagem? Não importa as filosofias e ideais criados como raciocínios matemáticos que giram à volta do Tudo para chegar ao Nada. Não importa, não importa, não importa. Respiro e milhões, biliões, triliões de partículas de ar e de vapor de água moveram-se na atmosfera, chegando à minha imagem e embaciando-a. Algo mudou. Algo que macroscopicamente parece minúsculo, mas que visto de perto e com verdadeiros olhos, é algo de grandioso e mágico. Que importa o resto, se sei que apenas num sopro algo mudou por minha causa? Sabe bem saber que faço diferença, por mais insignificante que ela seja (a certos olhos, que não os meus).

Miguel Cruz

1 de Agosto de 2011

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Retrato a Óleo

Um retrato. Tinta de óleo em tons de azul muito escuro espalha-se por toda a parte superior da tela. Com um pincel fino desenhe-se pontinhos brancos, espalhados por toda a tela. Com tinta preta carregada, molda-se um vulto, negro pela noite, embrenhado no azul escuro. E por debaixo dos seus pés, uma mancha, preta da escuridão, à qual dão o nome de chão. O vulto, o céu e as estrelas. Mais nada. Um retrato no qual alguém foi representado com os pés assentes no chão…

Veja-se outro retrato. Mesmo céu, mesmas estrelas, mesmo vulto. No entanto, visto de um outro ponto. Não há chão. O que se vê é um vulto no meio da noite, este já com um rosto visível. Repare-se na expressão do rosto. Boca extremamente aberta, olhos com o horror espelhado nas suas córneas. Rugas da testa vincam-se, como resultado do estiramento da pele das sobrancelhas para baixo. Que estará ele a fazer? Pela expressão, parece estar a gritar. Mas porque é que não se ouve? Por ser um retrato? Não… Os gritos ouvem-se quando se mostram. E esta pintura mostra claramente um grito. Porque não o sinto? Estará vazio?

Gritos mudos não são gritos vazios. Normalmente, são gritos mais cheios que os gritos sonoros. Gritos que armazenam em si toda uma vida de dor.

Mas observe-se ambos os retratos. Um ausente de rosto ou expressão, com os pés assentes num chão desprovido de luz. Outro ausente de chão, com uma expressão arrebatadora presente num rosto que exprime um grito mudo. Será o mesmo vulto em ambos os retratos?

Experimente-se desenhar um rosto no vulto pousado sobre o chão. Que rosto se vê? Não é o mesmo… Olhos sem expressão, boca inerte, nenhum músculo contraído para desenhar qualquer ruga nas faces. Porquê este rosto?

Desenhe-se agora, em ambos os retratos, os sonhos. No primeiro retrato, do vulto pousado no chão, ausente de expressão, foram desenhados sonhos em todos o pontos pertencentes ao exterior dos limites da sua visão periférica. No segundo retrato, os sonhos foram desenhados em forma de chão, pisados pelo vulto.

Interprete-se tais retratos.

No primeiro, o rosto permanece ausente de expressão, mesmo com os sonhos ao seu alcance. Não os vê. Não os procura. Não sente nada. Talvez desmotivação. Não entende porque vive. (Na verdade, ninguém entende, nem tem de entender. A Natureza confiou-nos a vida por alguma razão. Vivamo-la, sem questionar. Qual seria o interesse da vida se soubéssemos a sua razão?). Torna-se mais um rosto apenas no meio da multidão, sem rumo, tal como todos os outros, deixando que a vida o guie e não o seu coração ou as suas escolhas.

Olhe-se então para o segundo retrato. O vulto de expressão horrorizada pisa os seus sonhos. Viu-os. Procurou-os. Já os seguiu. Já lhes perdeu o alcance. Descobriu nos seus curtos dias que os sonhos são inalcançáveis e que quando se alcançam, deixam de ser sonhos, para se tornarem realidades dolorosas. Todos os sonhos são perfeitos quando visíveis ao longe. Quando passamos por eles, tornam-se dolorosos. É isso que desenha tal expressão no pobre vulto. É isso que o faz pisar os sonhos que sonhou. O seu olhar aponta para as estrelas em busca de algo. Será de mais sonhos? Com toda a certeza se diga que é. Ser que sonhe um sonho perdido, nunca o esquecerá se não sonhar outro sonho perdido.

De ambos os retratos, o mais aceitável será o segundo. Há quem procure a ausência de dor, tentando eliminar os sonhos da sua vida. Lhes digo, estarão a desperdiçar uma vida que a Natureza criou. Não se sabe a razão pela qual o fez, mas deve-se valorizá-la, não vá ela ser fulcral para algo. (Parando de divagar por suposições inexplicáveis). Só com a dor se aprende a viver. Sonhe-se, para que haja sempre uma razão para viver. Só assim se encontra o prazer da vida, por mais dor que ela traga.

Apague-se o rosto horrorizado e desenhe-se um sorriso espalhado pelos lábios, olhos e rugas sombreadas pelas faces. Sofra-se com um sorriso nos lábios, pois estaremos a viver um propósito. Afinal de contas, só com a dor se pode viver uma vida de prazer.

Miguel Cruz

27 de Julho de 2011