quarta-feira, 27 de julho de 2011

Retrato a Óleo

Um retrato. Tinta de óleo em tons de azul muito escuro espalha-se por toda a parte superior da tela. Com um pincel fino desenhe-se pontinhos brancos, espalhados por toda a tela. Com tinta preta carregada, molda-se um vulto, negro pela noite, embrenhado no azul escuro. E por debaixo dos seus pés, uma mancha, preta da escuridão, à qual dão o nome de chão. O vulto, o céu e as estrelas. Mais nada. Um retrato no qual alguém foi representado com os pés assentes no chão…

Veja-se outro retrato. Mesmo céu, mesmas estrelas, mesmo vulto. No entanto, visto de um outro ponto. Não há chão. O que se vê é um vulto no meio da noite, este já com um rosto visível. Repare-se na expressão do rosto. Boca extremamente aberta, olhos com o horror espelhado nas suas córneas. Rugas da testa vincam-se, como resultado do estiramento da pele das sobrancelhas para baixo. Que estará ele a fazer? Pela expressão, parece estar a gritar. Mas porque é que não se ouve? Por ser um retrato? Não… Os gritos ouvem-se quando se mostram. E esta pintura mostra claramente um grito. Porque não o sinto? Estará vazio?

Gritos mudos não são gritos vazios. Normalmente, são gritos mais cheios que os gritos sonoros. Gritos que armazenam em si toda uma vida de dor.

Mas observe-se ambos os retratos. Um ausente de rosto ou expressão, com os pés assentes num chão desprovido de luz. Outro ausente de chão, com uma expressão arrebatadora presente num rosto que exprime um grito mudo. Será o mesmo vulto em ambos os retratos?

Experimente-se desenhar um rosto no vulto pousado sobre o chão. Que rosto se vê? Não é o mesmo… Olhos sem expressão, boca inerte, nenhum músculo contraído para desenhar qualquer ruga nas faces. Porquê este rosto?

Desenhe-se agora, em ambos os retratos, os sonhos. No primeiro retrato, do vulto pousado no chão, ausente de expressão, foram desenhados sonhos em todos o pontos pertencentes ao exterior dos limites da sua visão periférica. No segundo retrato, os sonhos foram desenhados em forma de chão, pisados pelo vulto.

Interprete-se tais retratos.

No primeiro, o rosto permanece ausente de expressão, mesmo com os sonhos ao seu alcance. Não os vê. Não os procura. Não sente nada. Talvez desmotivação. Não entende porque vive. (Na verdade, ninguém entende, nem tem de entender. A Natureza confiou-nos a vida por alguma razão. Vivamo-la, sem questionar. Qual seria o interesse da vida se soubéssemos a sua razão?). Torna-se mais um rosto apenas no meio da multidão, sem rumo, tal como todos os outros, deixando que a vida o guie e não o seu coração ou as suas escolhas.

Olhe-se então para o segundo retrato. O vulto de expressão horrorizada pisa os seus sonhos. Viu-os. Procurou-os. Já os seguiu. Já lhes perdeu o alcance. Descobriu nos seus curtos dias que os sonhos são inalcançáveis e que quando se alcançam, deixam de ser sonhos, para se tornarem realidades dolorosas. Todos os sonhos são perfeitos quando visíveis ao longe. Quando passamos por eles, tornam-se dolorosos. É isso que desenha tal expressão no pobre vulto. É isso que o faz pisar os sonhos que sonhou. O seu olhar aponta para as estrelas em busca de algo. Será de mais sonhos? Com toda a certeza se diga que é. Ser que sonhe um sonho perdido, nunca o esquecerá se não sonhar outro sonho perdido.

De ambos os retratos, o mais aceitável será o segundo. Há quem procure a ausência de dor, tentando eliminar os sonhos da sua vida. Lhes digo, estarão a desperdiçar uma vida que a Natureza criou. Não se sabe a razão pela qual o fez, mas deve-se valorizá-la, não vá ela ser fulcral para algo. (Parando de divagar por suposições inexplicáveis). Só com a dor se aprende a viver. Sonhe-se, para que haja sempre uma razão para viver. Só assim se encontra o prazer da vida, por mais dor que ela traga.

Apague-se o rosto horrorizado e desenhe-se um sorriso espalhado pelos lábios, olhos e rugas sombreadas pelas faces. Sofra-se com um sorriso nos lábios, pois estaremos a viver um propósito. Afinal de contas, só com a dor se pode viver uma vida de prazer.

Miguel Cruz

27 de Julho de 2011