domingo, 21 de novembro de 2010

Vida Urbana, ou Vida?


Um quarto vazio, apenas com cortinados leves esvoaçando com o vento que entra pela janela entreaberta. Um ruído resultante das vidas misturadas que passeiam lá em baixo entranha-se pelo silêncio do quarto, dando-lhe um clima urbano calmo. A porta do quarto está encostada, mas não fechada. A corrente de ar causa um batuque irregular da tranca da porta a bater na ombreira. O quarto apenas está mobilado com uma mesinha de madeira e um jarro de cristal com uma tulipa a baloiçar na água já suja. Vem uma rajada mais forte que as outras e leva uma pétala da flor que segue pela janela fora.
Lá vai a pétala a baloiçar, procurando o equilíbrio no muro de vento líquido ou gasoso até descer ao nível dos vultos que passeiam na rua. Atravessa os sorrisos da gente nova, atravessa os olhares tristes da gente velha. Atravessa a cabeças incansáveis dos gatos a explorarem tudo em seu redor e os focinhos dos cães que farejam em busca do dono. Atravessa os senhores que andaram na guerra e pedem esmola pela perna que perderam. Atravessa os homens que com a sua guitarra fazem o pé-de-meia para sobreviver à custa do divertimento dos outros. Atravessa as senhoras que gritam na rua a qualidade dos seus peixes. Atravessa o medo do homem que roubou a carteira anteriormente fechada numa mala. Atravessa o desespero do homem que a perdeu. Atravessa as lojas de sucesso e as lojas invejosas desse sucesso. E por fim, arrasta-se pelo chão, quando o vento não consegue mais. No chão fica, abandonada, a murchar cada vez mais, perdendo a cor que uma vida dá, apenas vivendo sem viver e esperando um acaso da vida ou o destino.
Surge o primeiro. Um menino pega na pétala e começa a correr, tropeçando-se devido ao seu pouco tempo de vida. Grita à mãe no meio de risos de felicidade pela sua descoberta. Levanta a mãozinha na direcção do olhar da mãe procurando uma resposta. A mãe pega na pétala e sopra na direcção do vento para que voe essa pétala murcha e sem cor. Diz que já não tem interesse e muitas mais há, mais bonitas até. O menino olha a pétala triste da sua perda. Mas não por muito tempo. Segundos depois já pulava e saltava de alegria pela folha seca que descobrira. E a nossa pétala voa para onde o vento a manda, perdendo-se no infinito do mundo.
As nuvens não aguentam mais o seu peso suspenso, começando a cair vertiginosamente. Forma-se a chuva. Os pingos molham a gente nova que começa a correr em busca de abrigo nos cafés. Molham a gente velha que abre o chapéu-de-chuva protestando contra o clima do país. Molham os gatos que se abrigam debaixo dos caixotes do lixo comendo os restos do peixe deixado pela gente. Molham os cães que correm em busca de poças para brincar, sacudindo as orelhas molhadas. Molham os senhores sem uma perna que ficam sentados por baixo da varanda maldizendo a chuva por impedir a angariação dos seus fundos de sobrevivência. Molham os homens que tocavam e agora arrumam a guitarra e os trocos ganhos para os ir gastar no chocolate quente do café mais próximo. Molham as senhoras que desfazem as tendas do seu peixe, enviando pragas à chuva por estragar o negócio. Molham o homem que ia para casa com a carteira roubada, mas abrigou-se da chuva num café. Molham o homem que a perdeu e encontrou o assaltante em pleno café, recuperando a carteira. Molham os vidros das lojas cheias de gente, dando graças à chuva. Molham o menino com cara molhada de lágrimas e da chuva. Molham a nossa pétala que recupera a cor e a vida e dá graças à chuva, não pelo dinheiro que vai conseguir, que de nada lhe serve… mas sim pela vida que esta lhe devolveu!

Miguel Cruz
21 de Novembro de 2010